Quem sou eu

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Engenheiro eletrônico e administrador de empresa, sempre trabalhei na área industrial, vivi 12 anos em São Paulo, algumas viagens internacionais e voltei para Manaus, pai de três filhas e um filho, Selma, essa linda mulher da foto, é minha esposa, gosto de preparar uma boa comida para os amigos e ouvir um bom violão.

sábado, 18 de abril de 2009

Estatística e chifre não combinam

Meu primeiro emprego foi na Sharp do Brasil, tinha dezoito anos, universitário, contratado como técnico de Controle da Qualidade. Era eu e Simão Pessoa, nosso trabalho era controlar as principais características dos aparelhos, usando método estatístico, e aprovar ou reprovar os lotes. Acontece que estamos falando de aparelhos que na época eram muito pesados, o que dificultava o manuseio. O Departamento de Pessoal contratou para essa tarefa um garoto da Boca do Acre, que veio nos ajudar a coletar as amostras na produção e levar para serem analisados no CQ e devolve-los a produção.
Tarefa simples se não fosse a esperteza dos líderes de produção que deixavam aparelhos com defeitos nos lugares mais hostis para serem atingidos, tipo como num lote de 100 televisores os defeituosos estarem no centro deles. Era preciso desmontar o empilhamento, retirar algumas peças e depois montá-lo novamente. Coisa que só começamos a fazer após a chegada do Jackson. Antes era só nas laterais, e nas laterais todos os aparelhos funcionavam muito bem. Então chegou o Jackson e no primeiro dia retirou cinco peças do centro de um empilhamento. Cinco defeitos, todo o lote reprovado, extras noturnos, trabalho aos sábados. Rivelino e Leandro ficaram doidos.
Ali o que funcionava era o faro.
Era difícil para o Jackson entender aquilo tudo. Dias antes tinha carro, comida e roupa lavada, dinheiro e belas mulheres, agora, muitas caixas para desempilhar. Simão sempre dizia para ele, não chore: playboy que é macho não chora. Ele nunca chorou.
Aguentava aquilo como uma provação divina.
Em São Paulo, depois de muito tempo, fiz um curso de extensão universitária em estatística. Então, um dia fazendo uma visita aos colegas de Manaus, fomos beber cerveja na praça do caranguejo, quando de repente um dos setes presentes (Paulo Medeiros, Stones Machado, Sebastião Peixoto, Geraldo Nogueira, Garrafa, Praciano, Eduardo Pimentel) começou a falar que estava tendo um caso com uma mulher casada, logo depois outro admitiu a mesma coisa, e um após o outro foram sempre falando das mulheres casadas, não me lembro se todos falaram, mas quando chegou a minha vez disse que respeitava as mulheres casadas e seus maridos, contudo tinha me tornado um especialista em estatística e que analisando uma amostra de um universo, poderíamos inferir sobre o universo todo. E que com aquela amostragem sobre as mulheres casadas que estavam traindo, eu poderia afirmar que pelo menos cinco dos presentes estavam pegando chifre, nem precisei explicar.
A conversa mixou, um a um telefonou para saber onde a esposa estava e foram de mansinho para casa. Sobrei com a garçonete, fui para um motel depois que ela garantiu não ser casada.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Poema 2

Ao longe a paisagem rubra esfria em negro metal,
são os últimos raios de sol que agonizam no horizonte.
Fixando nas minhas retinas uma paisagem sanguínea escarlate
em furtivas cores e retorcidas imagens.

Entre o sono e a vigília me entrego às memórias de outros tempos.

São visões tênues dos dias de sol,
vozes indecifráveis, rostos disformes em pálidas indumentárias,
cenas que pensei ter esquecido.

É um quebra-cabeça de mil partes
ou de infinitas poses,
onde as peças giram ao léu.

Poses que na pressa do dia joguei ao chão,
simples afagos de parentes queridos,
ou o medo que em tudo havia.
O medo que o almoço de domingo se prolongasse
e colocasse em risco a matinê que começava as treze,
medo de não ver o filme do meu super-herói,
medo de encontrar ocupado o lugar ao lado dela.

Tudo é muito confuso dentro dessa profusão de coisas,
faces e sons que não entendo.

Recordações sem cronologia.

Lembro vagamente dos beijos e pêlos,
e do corpo de tantas mulheres que se entregaram,
deram-se sem pudor em ventre e útero.

Lembranças guardadas a esmo,
que importa o dia que eu disse sim,
e se dissesse não, mudaria alguma coisa.

Que importa se o nome de Fernanda
aparece em centenas de peças
e poses,
entorpecendo meus olhos.

Ela apenas se sentou ao meu lado no trem,
Sorriu, me beijou e na hora
certa ou incerta desceu e disse adeus,
adeus respondi.
Que importa se prometi ligar,
escrever.
O numero do telefone escrito num guardanapo usado,
caiu do bolso e foi ao chão,
E com ele caiu Fernanda,
agora imagem imprecisa, estática em algum lugar
daquela velha estrada escaldante,
onde um dia errei.

Tantas coisas ficaram para trás,
Fernanda e outras tantas que caíram dos bolsos,
E da lembrança.

Caíram e foram fazer companhia aos meus destroços,
aos brinquedos quebrados, roupas usadas,
ou ficaram perdidas entre folhas de livros nunca lidos,
mesmo um cartão de natal ou bilhetes com propósitos circunstanciais,
ficaram guardados em gavetas emperradas de velhas mesas.

Tantas coisas caíram,
e foram sugadas pelo cotidiano que tudo devora.

Mas outras ficaram em mim, grudadas na pele,
na pele metafísica que tecemos
a cada choro, sopro e riso.
Algumas decerto ficaram como as tatuagens
na pele engelhada de gordas senhoras,
tão gordas e sérias
que não dá para imaginar o dia que se tatuaram.

Ficaram e estão aqui,
presto que recordo,
as vejo e sinto seus cheiros.

E mesmo não sendo real, existem.

Gravitam em torno de nós,
obedecendo as leis da natureza
que homens tão inteligentes
demoraram tantos séculos para descrevê-las,
quando bastava senti-las.

Mas me recordo,
foram tantas coisas que deixei,
coisas que ficaram grudadas na saliva
que cuspi.

Cidades que vi das janelas dos trens
e logo esqueci,
lindos sapatos de pelica
que comprei e se gastaram,
gastaram-se a cada passo que dava,
depois de velhos ficaram para traz,
e comprei tantos outros sapatos, camisas, livros que presenteie e nunca foram lidos.

Principalmente vidas em sal compartilhadas,
ficaram esquecidas quando o desespero que o cotidiano
e sua insistente falta de grana, projetos harmônicos,
ou simplesmente paz, empurrava-me as ruas,
as noites, aos becos, as vaginas e aos motéis baratos.

Agora vejo o crepúsculo.
e sinto uma sensação que tudo é vazio,
e não chega a ser um arrependimento,
nem revolta, mas um olhar passivo
quase sem vida, vida que nunca aspirei.

Ou pior - vida sem volta,
Porque não há motivos para voltar

Nem para seguir em frente,
esperando um amor que nunca virá.

São tantas coisas jogadas fora,
E quando as queremos, as perdas já são definitivas.

Tanta coisa deixada nos cantos das casas que habitamos,
na lembrança das mulheres que amamos,
tantas palavras amargas, ditas para ferir e ferem.
Magoam.

Imaginar que a indiferença preencheu o espaço
deixado pelos amores acabados.

E quando tudo finalmente se monta,
diante do cansaço físico de ver esse carrossel que já passou,
aparece teu nome.

Fernanda.
Um nome que pouco pronunciei,
um rosto que nunca vi.

E mesmo assim acho que é amor
O que sinto por essa estranha.

Um amor criado nas decepções de outros amores,
fragmentado em mil partes, pacientemente remontado,
e nenhuma dessas partes te pertence ou me pertence,
mas quando montadas, em perfeita harmonia,
aparece teu rosto.

Teu rosto no fúlgido horizonte,
teus lábios escarlates e rutilantes,
sorrindo, furtivamente dizendo meu nome.

Meu nome pronunciado com dor,
Por alguém que não existe,
Meu nome...
E ainda assim esse nome que não me pertence,
ecoara no horizonte e se perdera para sempre,entre as constelações do universo.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Capítulo 2 - O Bar do Armando

O Bar do Armando
A força do hábito nos levou até o Bar do Armando. Era uma segunda-feira e foi triste constatar — somente os mais dependentes vão lá às segundas. Não quero com isso criticar ninguém, criar uma pecha ou estigma. Mas às segundas, somente um motivo muito especial, como aquela homenagem, pode atrair homens sérios a um bar do centro da cidade, bem ao lado de uma igreja.
Vamos deixar as abstrações e nos ater ao bar. Estava mais apático que outras vezes, poucas mesas foram armadas naquela noite. O português estava cantando o samba enredo da escola de samba do Morro da Liberdade, feito em sua homenagem para o Carnaval de 2000. Ele, com frequência, parava de cantar, ainda não tinha decorado a letra e hesitava ou misturava os versos. A esposa explodia em risos, entretanto, procurava acalmar os amigos dizendo que ele tinha a seu favor, quase três meses para decorar a letra, e que eram versos simples. Depois fitava todos com seriedade e pedia que dessem crédito à inteligência do marido:
— Armando já decorou coisas mais difíceis: o Hino do Vasco da Gama é uma.
Na verdade todos nós estávamos torcendo, mas ninguém, em bom juízo, seria capaz de apostar que ele conseguiria.
Armando não ligava. Estava feliz. Naquela segunda-feira havia sido indicado, pela Câmara Municipal de Manaus, para receber uma medalha, oferecida às pessoas que prestam serviços relevantes à cidade. Uma invenção de algum vereador para preencher o tempo que deveria ser usado para fiscalizar à Administração do Executivo. Ainda assim, muito melhor que doar sepulturas, fazer programas em rádio ou televisão ou ficar trocando os nomes das ruas de Manaus. Na verdade entorpecer a alma dos gentios com cervejas, pode ser, de fato, uma ação verdadeiramente humanitária que precisa ser homenageada. E viva o Armando.
Não custamos a perceber que o recinto não poderia ser palco para uma homenagem como aquela. O Bar do Armando não é o mesmo às segundas. Mesmo às terças a freqüência é pequena e os meus amigos raramente aparecem lá, somente às quartas é que as coisas começam a melhorar.
Davi é a única exceção! Ele inicia seu final de semana às terças, sempre no Bar do Armando e termina às segundas num bar acanhado do Beco do Macedo. Davi já foi como os demais, tinha uma semana de muito trabalho, mas o seu fim de semana foi se agigantando e das sextas passaram iniciar às quintas, depois às quartas e finalmente às terças. Diante da decisão metafísica, se deveria iniciar, ainda mais cedo o fim de semana, Davi resolveu adiar o término, e passou a freqüentar, às segundas, um pequeno bar do Beco do Macedo, desses que se bebe no balcão.
Agora Davi principia o fim de semana sempre às terças no bar do Armando e vai logo dizendo:
— Só vou tomar uma, vou deixar para beber na sexta...
É sempre a mesma ladainha, dita em voz alta, e é quase um pedido de socorro. Algumas horas depois lá esta ele, como diz a Jozenilda: com um olhar de peixe morto à bomba falando num idioma esquisito.
E a pobre Jozenilda, sempre sorrindo ao seu lado. Jozenilda a abnegada esposa, dessas que só nasce uma a cada cem anos, uma e... foi ser a esposa do Davi. Como é cruel a Lei de Murphy “se algo pode dar errado, vai dar errado”. Como é dura a vida da Jozenilda, sempre cuidando do Davi, escorando seu corpo com um abraço, segurando os copos que ele derruba das mesas, explicando a conversa e até pedindo para ele rir das piadas que nunca entende. Na hora certa do riso, ela o avisa com uma voz suave como o farfalhar das árvores:
Daviiiiiiii
Ele, sem compreender, mas entendendo o aviso, olha para os outros e então... explode em gargalhadas, e em todos fica uma enorme desconfiança que somente ele entendeu a piada.
A felicidade do casal esta no fato da Jozenilda nunca ter reclamado do marido, ela nunca deu o braço a torcer. Há vinte anos, quando o apresentou a sua mãe, aconteceu um entrevero ou melhor dizendo um verdadeiro arranca rabo entre os dois. Era um domingo e a família estava reunida na frente da TV. Ela entrou rindo na sala abraçada com o Davi: um sonho feliz na inocência da juventude. Quando todos se voltaram para eles, ela disse:
— Mamãe, este é o Davi Carlos; estuda no colégio e esta fazendo teatro: quer ser ator.
A mãe a chamou de lado e olhando-o de soslaio, com uma grande desconfiança e sem estender à mão, fulminou o idílio da filha:
— Ele é muito feio. Mas me diga, precisava também ser ator?!
Certo dia questionei a mãe da Jozenilda, mas ela disse que tudo foi um mal entendido e desconversou:
— Ele era só um estudante assustado querendo namorar minha filha.
Davi tem outra explicação:
— Além da forte carga emocional a conotação foi outra.
São experiências assim que marcam a gente para todo o sempre. Foi, apesar de tudo, uma experiência fecunda para eles. Tornaram-se um casal exemplar. Admiro o respeito entre os dois e o cuidado que ela dispensa ao marido nas horas mais incomodas. Como acontece todos as noites na hora de deixar o bar e voltar para casa:
Davi Carlos... tá na hora... vamos para casa... menino já chega.
Ela nunca precisa repetir mais do que 10 ou 20 vezes. Ele finalmente abre os olhos, se levanta e vai, sem questionar, para casa.
Só uma vez na minha vida vi a Jozenilda ficar zangada com o Davi. Aconteceu num ensaio de uma escola de samba. Foi por causa de uma passista, uma morena bonita mas com pesadas marcas do tempo. Estava com uma fantasia sumária e um enorme topete na cabeça. Ela olhou para o Davi, sorriu e o chamou para dançar. Davi que não gosta de contrariar ninguém, aceitou o convite. Dançaram uma meia hora. Tempo suficiente para germinar na cabeça da esposa aquilo que uma mulher tem de pior: o ciúme. E o ciúme transformou o beijo inocente e trivial que Davi deu na passista num ato reprovável. Naquela noite, Jozenilda se mostrou uma mulher insensata e ciumenta. Foi somente com muito custo, que a fizemos entender que a morena só estava interessada no borogodo do Davi, e ele por sua vez, só quis ser simpático. No final, como é de praxe, Jozenilda chorou, pediu desculpas ao marido, que generoso como é, foi complacente. Depois ela se desfez em carinhos, se tornou mais dependente, e como manda o figurino, ficou ainda mais submissa. No outro dia acordou cedo, lavou, passou, arrumou a casa, preparou café e ovos fritos para o marido que ainda dormia. Antes de sair para o trabalho, ainda com muito remorso, escreveu um bilhete dizendo que voltaria cedo para fazer o almoço: que ele não se preocupasse. Uma mulher feliz torna mais fácil a vida difícil dos homens.
Deixando a vida dos outros e a sorte de cada um no casamento de lado, vamos voltar ao bar do Armando naquela fatídica noite. Lá notei com certa surpresa que para todo dia é dia. Desde nossa chegada, mesmo sendo uma segunda feira, ele era constantemente saudado por todos. Pagava uma pinga aqui, uma cerveja ali, distribuía sorrisos e abraços. Só decidimos sair de lá quando veio sentar-se conosco o Ricardo, um amigo comum, que acabara de chegar trazendo a notícia da morte do Leal, amigo de todos e freqüentador contumaz do local. Morreu de cirrose hepática: barriga inchada, vários dias de coma... vomitando sangue. A notícia se espalhou rapidamente, paralisando o bar. Depois de alguns minutos todos voltaram a beber compulsivamente. Ficaram com os nervos à flor da pele. também ficou nervoso com a notícia, mas depois de várias doses se acalmou. Era um homem feliz e sempre se sentia bem em qualquer bar, em qualquer hora, em qualquer situação. Não era o primeiro amigo que perdia assim. Mas, por motivos óbvios, depois daquela notícia, resolvemos sair dali. Decidimos ir ao Bar do 5 Estrelas.
Durante o trajeto ele afagou várias vezes a barriga, ali na região do fígado. Estava distante, alheio. Talvez tentando adivinhar o resultado do teste de sangue que fez dias antes, quando sentiu fortes dores no abdome. Fez tudo o que o médico solicitou. Mas se recusava a ir pegar os resultados. Quando entramos no bar do 5 Estrelas, ele esqueceu da vida.

Poema para o poeta, ó poeta

Ó cidade
(Ao poeta Aldísio Figueiras, ó poeta)

Eu te lavarei minha cidade
nas águas puras do Rio Negro,
mergulharei teu corpo
nas águas frias,
para aplacar a ira do sol
que te caustica,
mergulharei tuas entranhas
nas águas claras,
para lavar a gana
dos políticos que te castigam,
nas águas serenas
mergulharei
teus bares noturnos,
para acalmar a volúpia
das adolescentes que te povoam,
nas águas profundas
mergulharei tua alma
para agradecer aos poetas
que te cantam.

Eu te lavarei minha cidade
para poder morrer em paz
ó cidade

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Capítulo 1 - A homenagem

Era uma manhã de domingo morna e abafada, quase estática. Sentado à beira do rio, contemplava as pacas que havia caçado na noite anterior, muito próximo de uma reserva indígena, perto do município de Pres. Figueiredo. Estava cansado e temia não ter forças para carregar a caça até o carro, uns 4 km do local onde me encontrava. Começava Novembro, um mês ruim, quando sempre acontecem coisas estranhas. Paulinho morreu em Março daquele ano, eu sequer tinha ido ao enterro.
Em Manaus, os jornais estampavam, com grande ênfase, a inauguração da Biblioteca da Universidade do Amazonas que receberia seu nome. Eu estava caçando há uma semana e não sabia de nada. A caça era boa e estar muito perto da reserva aumentava a adrenalina. Mas como dizia, Novembro é um mês ruim e sempre fico inquieto. Depois de retornar ao sítio onde passava o dia dormindo, limpei a caça, tomei um demorado banho de igarapé, comi um naco de carne de anta com cachaça, fiquei esticado numa rede de tucum, mas não consegui pegar no sono. O sol já estava a pino. O dia continuava quente e sem brisa, parecia que toda a natureza fervia dormente. Não conseguia me aquietar, como se ouvisse um chamado de volta a Manaus. Quando a noite já ia alta, de súbito me levantei da rede, arrumei as tralhas, coloquei a caça congelada nas caixas de isopor, e retornei, encontrando a cidade mergulhada em seu próprio sono. Fui imediatamente dormir, sem sequer olhar os jornais que se amontoavam na porta de casa. Na cabeça muitas perguntas: O que teria acontecido? O que esse Novembro havia me reservado? O que me chamou de volta? Tinha planejado passar uns dez dias caçando, longe de tudo, e desisti sem saber o porquê.

Na manhã de segunda feira, notei uma mensagem na secretária eletrônica, era Simão Pessoa:
— ­Não esqueça. Vai ser hoje. Todos vão aparecer. Convém não faltar, te encontro lá.

Quando saía de casa, só pensava no Paulinho.

Cheguei cedo ao escritório e fui logo entrando na Internet para ler as mensagens acumuladas durante os dias que fiquei caçando. Lá, entre várias, estava uma mensagem do Zémaria:
— Vai ser na segunda-feira no Campus Universitário, começa às 16 horas, te encontro lá. Vou levar uma garrafa de uísque. Acho que o Paulinho não vai se importar.

Certamente que não, pensei concordando com a idéia. Achei desnecessário responder, saí da Internet e pedi para a secretária não marcar compromisso depois das 15 horas e comecei a trabalhar.

Eu, como todos já desconfiavam, não fui. Parece incrível, mas naquele dia, sai do trabalho com o firme propósito de comparecer à cerimônia. Entretanto, durante o trajeto, uma frase martelava os meus tímpanos “te encontro lá”. Eu já tinha escutado aquela frase antes, era como uma senha, sempre que marcávamos um encontro num bar. Intui que “lá” só podia ser noutro lugar. E que nem todos estariam lá. Principalmente o homenageado. Assim, mudei de idéia, desisti. Acho que fiquei com medo de admitir sua morte. Não sei muito bem o que aconteceu, mas momentos antes de chegar ao Campus, uma força estranha me fez parar o carro, me fez abrir a porta, e sob o pretexto de comprar cigarros, me fez entrar no primeiro bar que encontrei. Foi algo muito maior do que eu.

Logo da entrada do bar, avistei sorrindo e feliz. Estava sozinho, sentado numa mesa na parte mais escura e suja do fundo do salão; no chão, pontas de cigarros se misturavam com garrafas vazias de um rum barato. Fiquei aliviado. Como foi bom encontra-lo, era um grande amigo, um camarada, que sempre estava pronto para ouvir, o quanto fosse necessário, que pouco interrompia e raramente discordava. Minha sorte começava a mudar. Sim, somente ele seria capaz de me esperar num bar daquele para me ajudar. Era a pessoa certa no lugar certo, aquela que aparece na hora mais oportuna, talvez o melhor dos amigos. Compreendi logo que ele era a minha salvação e não hesitei, imediatamente respondi com um largo sorriso e um forte abraço. Depois, sentados e calados tomamos vários tragos.

ficou curioso, matutando sobre os motivos da minha presença ali, mas não ousava perguntar. Demonstrava visível alegria com minha chegada. Era neto de ingleses que vieram para Manaus na época áurea da borracha, uma família rica que lhe propiciou uma boa vida. , como era chamado pelos mais chegados, foi educado na Europa, falava vários idiomas, conhecia o mundo, poderia morar onde quisesse mas escolheu voltar e ficar em Manaus, adotando uma vida simples. Dar aulas de artes plásticas para o segundo grau da rede pública e não era para sobreviver. Fazia isso, segundo ele mesmo, para contribuir com o desenvolvimento da cultura no nosso Estado. Coisa que eu duvidava. Lembro dele, ainda muito novo, e terminando o ginasial, quando se matriculou num grupo escolar, com o único intuito de comer as “pobres, infelizes, indefesas e sonhadoras caboclas”, em outras palavras, as adoráveis secretárias do lar que ali estudavam. Comum a família da capital de melhor poder aquisitivo, mandar buscar meninas do interior para ajudar nas tarefas caseiras. Em troca permitiam que elas continuassem seus estudos, pois normalmente no interior só existia o ensino primário. Assim, ele com aquele conhecimento, viajado, rico, mais instruído que os professores, rapidamente se tornava um ícone para suas colegas. Eu também estava acostumado a freqüentar grupos escolares buscando identificar presas para o abate. Todas as noites, precisamente as 22:00 horas, ficava no portão da escola do bairro, esperando a saída das alunas. Tudo acontecia muito rápido, era olho no olho, ali parado como os grandes felinos caçando, a espreitar, cada uma que passava, tentando descobrir um sinal de aprovação ou fraqueza, coisa que sempre acabava acontecendo. Mas, certo dia, uma grande surpresa, quando os portões se abriram, surgiu ele, abraçado em duas alunas. Duas das melhores.

Aquilo me deixou sem graça. Não bastasse isso, ele entrou num carro e saiu de mansinho. Uma verdadeira ofensa. Sobrou o resto e aquilo não era o bastante. E também sair de carro podia se tornar um mau exemplo, vai que todas, de agora em diante, fosse me cobrar sair de carro. Não era assim. Não tinha essa de sair de carro e namorar. Namorar é coisa de garoto fresco. Nós, os brutos da Joaquim Nabuco, apenas saciávamos nossa fome. Tudo de forma bem natural, como Deus planejou, debaixo das grandes árvores. Sim, nessa época, não havia iluminação pública naquelas ruas. E também não tínhamos carro ou dinheiro para leva-las pra outro lugar. As coisas eram resolvidas rápidas demais, sempre perto de uma árvore, um cantinho escuro ou até em casas abandonadas. Certo dia sai com uma gorda safadinha, que não usava calcinhas, de seios fartos, bicudos e duros. É verdade que era gordinha, mas tinha uma cintura mínima, sua blusa colegial meio aberta, tecido fino que mostrava os mamilos roxos, e provocantes. Bunda totalmente roliça. Íamos conversando, sem nada combinado, e quando passamos debaixo de uma mangueira medonha com enormes raízes saindo da terra, nos olhamos, e começamos a nos agarrar. Assim, rápido, sem cantadas ou indiretas. Em questão de segundos eu já estava dentro dela, totalmente. Ela ao ser penetrada começou a grunhir, inicialmente bem baixinho, mas como eu aumentava as estocadas e ia cada vez mais fundo, ela começou a gritar. Aquilo era o máximo. Fiquei feliz e orgulhoso, afinal uma gostosa chorando no meu pau. Acontece que naquela tarde, eu tinha jogado futebol. Estava muito cansado, as pernas completamente bambas. Estava fazendo um enorme esforço para não cair, mas perdi a concentração e acabei gozando. Cansado e satisfeito o pau rapidamente se encolheu. Ela ao perceber, me abraçou com as pernas, me apertando o quadril. Aquelas pernas gordas, fortes, jogando todo o peso do seu corpo generoso em cima de mim. Não agüentei e desabei, digo desabamos juntos, eu por cima dela. Aquela bunda branca e gorda, caiu direto nas raízes da árvore, se ferindo e saindo muito sangue. Ela continuou gritando, agora de dor, raiva e eu não percebi a tragédia. Achei que ela continuava no clima, me esforçando para não deixar escapulir. De repente uma tapa e o grito: tarado. A vizinhança correu. Uma gritaria geral. Saí na carreira, tentando abotoar as calças e não cair. Alguns amigos que estavam perto correram para o local e ao vê-la se levantando toda ensangüentada, começaram a rir. Ela por não ter o que dizer, gritou que eu era um aloprado e também saiu correndo. Durante mais de 5 anos, tempo que freqüentei aquele grupo escolar, fui chamado de “o aloprado”. Um apelido que aceitei sem muita resistência. Aquilo se espalhou. E eu conhecendo o meu gado, tratei de colher os frutos, passando a apertar a cabeça do pau, sempre que uma gostosa passava por perto. Os resultados foram extraordinários, depois desse dia as caças se deixavam abater sorridentes.

Bem, quanto ao jogo sujo do , de se matricular na escola, o que aumentava sobremaneira sua vantagem, pois era um lobo com pele de cordeiro entre as caças, com tempo para escolher pacientemente suas presas, resolvi exigir a sua expulsão. O que foi feito sem maiores empecilhos.

Ficamos afastados depois desses acontecimentos. Entretanto, já nos meados dos anos 70, quando trabalhava no recém inaugurado Distrito Industrial, que reunia as indústrias de ponta do setor eletrônico, encontrei , como gerente de produção de uma importante multinacional. Ele comandava aproximadamente 4.890 mulheres na idade entre 15 e 23 anos. Era uma outra época. Famílias inteiras do nosso interior miserável, migravam as pencas para o sonho dourado de Manaus e seu pólo de industrial. Aqui se instalavam nos bairros da periferia e só ai percebiam que as industrias precisavam predominantemente de mão-de-obra feminina. Logo o chefe de família, que na sua terra de origem era um pescador ou pequeno agricultor, estava fazendo bicos e se embebedando nas ruas de Manaus. As famílias se desestruturavam. Suas filhas, inocentes e ávidas de conhecimento, acabavam se tornando as mantenedoras da casa. Iniciavam nas empresas com montadoras de componentes. É verdade que deixavam as condições paupérrimas do interior e se tornavam mão-de-obra barata que as industrias tanto precisavam. Mas ainda assim viviam uma espécie de sonho encantado. As grandes empresas com suas técnicas motivacionais, colocavam uma cenoura, amarrada numa vara a frente de cada cabecinha pura daquelas pobres coelhinhas e haja estrada para elas correrem. Trabalhavam initerruptamente muitas horas alem do permitido pela lei natural que regia até então a vida dos amazonenses. Eram milhares de mulheres, todas muito novas, inexperientes e curiosas, vindas do interior, com muitos sonhos para realizar. Um ambiente propício para homens viris como eu e . Com um contingente tão grande como aquele, podíamos escolher sempre as mais bonitas e sonhadoras. Era primordial que fossem sonhadoras e que desejassem voar. ficou responsável por manter um bom plantel sempre a disposição.

Eu estava solteiro, tinha um bom salário. Dividia com dois amigos de infância uma casa bem montada, com vários quartos, piscina e churrasqueira. Ela foi transformada num verdadeiro buncker, toda grafitada, camas, muitas camas, além de tudo compramos um aparelho de som ensurdecedor. Era um poder formidável. Eu fui contratado pela mesma empresa como engenheiro eletrônico e comecei a trabalhar no laboratório de desenvolvimento. Ele, quando me viu, me recebeu como um grande amigo e mostrava não guardar rancor. Nessa época, eu tinha um fusca marrom equipado com os acessórios mais extravagantes. Uma maravilha. Um carro, ainda que fosse um fusca, uma casa, uma piscina, uma churrasqueira. Todo dia era dia de festa. Foi nessa época que nossa amizade se transformou em algo muito especial. Ele se tornou um verdadeiro irmão, sempre por perto.

Concluindo, com aquele passado, onde para comer as pobres e indefesas secretárias do lar, era capaz de se matricular num grupo escolar ou agüentar a loucura do trabalho das multinacionais, só poderia haver um único motivo para ter se tornado professor da rede publica: comer as infelizes alunas. Na realidade tratava-se da mesma coisa: mulheres, sempre mulheres, fossem empregadas domesticas, interioranas sonhadoras ou garotas da classe média baixa do ensino da rede pública. De fato, era muito comum encontra-lo na noite com uma ou duas alunas fardadas.
Contudo não podemos desconfiar de suas motivações magnânimas. Afinal basta olhar o que cada um de nós já fez por um bom periquito. E o que já sofremos por eles. sempre diz, aconselhando os mais novos: buceta é o único predador do homem. Verdade ou não, devemos tomar cuidado, entender esse predador, conhece-lo, cultivar sempre uma boa e leal amizade.
Voltando ao bar e ao , eu estava muito agitado com tudo aquilo, afinal era Novembro. Precisava me acalmar. Quando os amigos partem sem aviso, deixam na gente uma impressão confusa, uma sensação que sempre estão para chegar. Às vezes, me sento no Bar do Armando e ainda fico esperando por ele. Assim, ir à cerimônia, seria aceitar sua morte, expliquei a que rapidamente concordou comigo. A conversa como de costume se alongou, como também a fila de garrafas vazias ao lado da mesa. Nossa sede era descomunal. Mas a lembrança da homenagem no Campus criava um certo mal estar e além de tudo era uma segunda-feira. Então veio a idéia: uma homenagem ao Paulinho, somente eu e , sem aquela aura dos intelectuais, dos académicos que não conhecem o encanto sórdido das ruas. Seria de um modo fraterno, com a camaradagem que sempre nos acompanhou quando bebíamos juntos. Uma forma que o Paulo com certeza aprovaria. A idéia nos deixou excitados e rimos dos que foram ao Campus e estavam, provavelmente, ouvindo velhos discursos — Paulinho devia estar odiando tudo aquilo.

A homenagem logo conferiu dignidade e honradez aos nossos atos. Agora não era preciso nos esconder. Ao contrario, decidimos iniciar a homenagem o quanto antes e na forma mais ruidosa possível. Decidimos ir ao bar do Armando. Quando nos levantamos em direção ao carro, os olhos de estampavam um prazer diabólico, o mesmo que os lobos sentem quando mordem uma jovem presa. Eu nunca vi um lobo morder uma jovem presa, confesso também que nunca vi um lobo, mas tenho certeza que é assim, um prazer incontrolável.