Era uma manhã de domingo morna e abafada, quase estática. Sentado à beira do rio, contemplava as pacas que havia caçado na noite anterior, muito próximo de uma reserva indígena, perto do município de Pres. Figueiredo. Estava cansado e temia não ter forças para carregar a caça até o carro, uns 4 km do local onde me encontrava. Começava Novembro, um mês ruim, quando sempre acontecem coisas estranhas. Paulinho morreu em Março daquele ano, eu sequer tinha ido ao enterro.
Em Manaus, os jornais estampavam, com grande ênfase, a inauguração da Biblioteca da Universidade do Amazonas que receberia seu nome. Eu estava caçando há uma semana e não sabia de nada. A caça era boa e estar muito perto da reserva aumentava a adrenalina. Mas como dizia, Novembro é um mês ruim e sempre fico inquieto. Depois de retornar ao sítio onde passava o dia dormindo, limpei a caça, tomei um demorado banho de igarapé, comi um naco de carne de anta com cachaça, fiquei esticado numa rede de tucum, mas não consegui pegar no sono. O sol já estava a pino. O dia continuava quente e sem brisa, parecia que toda a natureza fervia dormente. Não conseguia me aquietar, como se ouvisse um chamado de volta a Manaus. Quando a noite já ia alta, de súbito me levantei da rede, arrumei as tralhas, coloquei a caça congelada nas caixas de isopor, e retornei, encontrando a cidade mergulhada em seu próprio sono. Fui imediatamente dormir, sem sequer olhar os jornais que se amontoavam na porta de casa. Na cabeça muitas perguntas: O que teria acontecido? O que esse Novembro havia me reservado? O que me chamou de volta? Tinha planejado passar uns dez dias caçando, longe de tudo, e desisti sem saber o porquê.
Na manhã de segunda feira, notei uma mensagem na secretária eletrônica, era Simão Pessoa:
— Não esqueça. Vai ser hoje. Todos vão aparecer. Convém não faltar, te encontro lá.
Quando saía de casa, só pensava no Paulinho.
Cheguei cedo ao escritório e fui logo entrando na Internet para ler as mensagens acumuladas durante os dias que fiquei caçando. Lá, entre várias, estava uma mensagem do Zémaria:
— Vai ser na segunda-feira no Campus Universitário, começa às 16 horas, te encontro lá. Vou levar uma garrafa de uísque. Acho que o Paulinho não vai se importar.
Certamente que não, pensei concordando com a idéia. Achei desnecessário responder, saí da Internet e pedi para a secretária não marcar compromisso depois das 15 horas e comecei a trabalhar.
Eu, como todos já desconfiavam, não fui. Parece incrível, mas naquele dia, sai do trabalho com o firme propósito de comparecer à cerimônia. Entretanto, durante o trajeto, uma frase martelava os meus tímpanos “te encontro lá”. Eu já tinha escutado aquela frase antes, era como uma senha, sempre que marcávamos um encontro num bar. Intui que “lá” só podia ser noutro lugar. E que nem todos estariam lá. Principalmente o homenageado. Assim, mudei de idéia, desisti. Acho que fiquei com medo de admitir sua morte. Não sei muito bem o que aconteceu, mas momentos antes de chegar ao Campus, uma força estranha me fez parar o carro, me fez abrir a porta, e sob o pretexto de comprar cigarros, me fez entrar no primeiro bar que encontrei. Foi algo muito maior do que eu.
Logo da entrada do bar, avistei Jô sorrindo e feliz. Estava sozinho, sentado numa mesa na parte mais escura e suja do fundo do salão; no chão, pontas de cigarros se misturavam com garrafas vazias de um rum barato. Fiquei aliviado. Como foi bom encontra-lo, era um grande amigo, um camarada, que sempre estava pronto para ouvir, o quanto fosse necessário, que pouco interrompia e raramente discordava. Minha sorte começava a mudar. Sim, somente ele seria capaz de me esperar num bar daquele para me ajudar. Era a pessoa certa no lugar certo, aquela que aparece na hora mais oportuna, talvez o melhor dos amigos. Compreendi logo que ele era a minha salvação e não hesitei, imediatamente respondi com um largo sorriso e um forte abraço. Depois, sentados e calados tomamos vários tragos.
Jô ficou curioso, matutando sobre os motivos da minha presença ali, mas não ousava perguntar. Demonstrava visível alegria com minha chegada. Era neto de ingleses que vieram para Manaus na época áurea da borracha, uma família rica que lhe propiciou uma boa vida. Jô, como era chamado pelos mais chegados, foi educado na Europa, falava vários idiomas, conhecia o mundo, poderia morar onde quisesse mas escolheu voltar e ficar em Manaus, adotando uma vida simples. Dar aulas de artes plásticas para o segundo grau da rede pública e não era para sobreviver. Fazia isso, segundo ele mesmo, para contribuir com o desenvolvimento da cultura no nosso Estado. Coisa que eu duvidava. Lembro dele, ainda muito novo, e terminando o ginasial, quando se matriculou num grupo escolar, com o único intuito de comer as “pobres, infelizes, indefesas e sonhadoras caboclas”, em outras palavras, as adoráveis secretárias do lar que ali estudavam. Comum a família da capital de melhor poder aquisitivo, mandar buscar meninas do interior para ajudar nas tarefas caseiras. Em troca permitiam que elas continuassem seus estudos, pois normalmente no interior só existia o ensino primário. Assim, ele com aquele conhecimento, viajado, rico, mais instruído que os professores, rapidamente se tornava um ícone para suas colegas. Eu também estava acostumado a freqüentar grupos escolares buscando identificar presas para o abate. Todas as noites, precisamente as 22:00 horas, ficava no portão da escola do bairro, esperando a saída das alunas. Tudo acontecia muito rápido, era olho no olho, ali parado como os grandes felinos caçando, a espreitar, cada uma que passava, tentando descobrir um sinal de aprovação ou fraqueza, coisa que sempre acabava acontecendo. Mas, certo dia, uma grande surpresa, quando os portões se abriram, surgiu ele, abraçado em duas alunas. Duas das melhores.
Aquilo me deixou sem graça. Não bastasse isso, ele entrou num carro e saiu de mansinho. Uma verdadeira ofensa. Sobrou o resto e aquilo não era o bastante. E também sair de carro podia se tornar um mau exemplo, vai que todas, de agora em diante, fosse me cobrar sair de carro. Não era assim. Não tinha essa de sair de carro e namorar. Namorar é coisa de garoto fresco. Nós, os brutos da Joaquim Nabuco, apenas saciávamos nossa fome. Tudo de forma bem natural, como Deus planejou, debaixo das grandes árvores. Sim, nessa época, não havia iluminação pública naquelas ruas. E também não tínhamos carro ou dinheiro para leva-las pra outro lugar. As coisas eram resolvidas rápidas demais, sempre perto de uma árvore, um cantinho escuro ou até em casas abandonadas. Certo dia sai com uma gorda safadinha, que não usava calcinhas, de seios fartos, bicudos e duros. É verdade que era gordinha, mas tinha uma cintura mínima, sua blusa colegial meio aberta, tecido fino que mostrava os mamilos roxos, e provocantes. Bunda totalmente roliça. Íamos conversando, sem nada combinado, e quando passamos debaixo de uma mangueira medonha com enormes raízes saindo da terra, nos olhamos, e começamos a nos agarrar. Assim, rápido, sem cantadas ou indiretas. Em questão de segundos eu já estava dentro dela, totalmente. Ela ao ser penetrada começou a grunhir, inicialmente bem baixinho, mas como eu aumentava as estocadas e ia cada vez mais fundo, ela começou a gritar. Aquilo era o máximo. Fiquei feliz e orgulhoso, afinal uma gostosa chorando no meu pau. Acontece que naquela tarde, eu tinha jogado futebol. Estava muito cansado, as pernas completamente bambas. Estava fazendo um enorme esforço para não cair, mas perdi a concentração e acabei gozando. Cansado e satisfeito o pau rapidamente se encolheu. Ela ao perceber, me abraçou com as pernas, me apertando o quadril. Aquelas pernas gordas, fortes, jogando todo o peso do seu corpo generoso em cima de mim. Não agüentei e desabei, digo desabamos juntos, eu por cima dela. Aquela bunda branca e gorda, caiu direto nas raízes da árvore, se ferindo e saindo muito sangue. Ela continuou gritando, agora de dor, raiva e eu não percebi a tragédia. Achei que ela continuava no clima, me esforçando para não deixar escapulir. De repente uma tapa e o grito: tarado. A vizinhança correu. Uma gritaria geral. Saí na carreira, tentando abotoar as calças e não cair. Alguns amigos que estavam perto correram para o local e ao vê-la se levantando toda ensangüentada, começaram a rir. Ela por não ter o que dizer, gritou que eu era um aloprado e também saiu correndo. Durante mais de 5 anos, tempo que freqüentei aquele grupo escolar, fui chamado de “o aloprado”. Um apelido que aceitei sem muita resistência. Aquilo se espalhou. E eu conhecendo o meu gado, tratei de colher os frutos, passando a apertar a cabeça do pau, sempre que uma gostosa passava por perto. Os resultados foram extraordinários, depois desse dia as caças se deixavam abater sorridentes.
Bem, quanto ao jogo sujo do Jô, de se matricular na escola, o que aumentava sobremaneira sua vantagem, pois era um lobo com pele de cordeiro entre as caças, com tempo para escolher pacientemente suas presas, resolvi exigir a sua expulsão. O que foi feito sem maiores empecilhos.
Ficamos afastados depois desses acontecimentos. Entretanto, já nos meados dos anos 70, quando trabalhava no recém inaugurado Distrito Industrial, que reunia as indústrias de ponta do setor eletrônico, encontrei Jô, como gerente de produção de uma importante multinacional. Ele comandava aproximadamente 4.890 mulheres na idade entre 15 e 23 anos. Era uma outra época. Famílias inteiras do nosso interior miserável, migravam as pencas para o sonho dourado de Manaus e seu pólo de industrial. Aqui se instalavam nos bairros da periferia e só ai percebiam que as industrias precisavam predominantemente de mão-de-obra feminina. Logo o chefe de família, que na sua terra de origem era um pescador ou pequeno agricultor, estava fazendo bicos e se embebedando nas ruas de Manaus. As famílias se desestruturavam. Suas filhas, inocentes e ávidas de conhecimento, acabavam se tornando as mantenedoras da casa. Iniciavam nas empresas com montadoras de componentes. É verdade que deixavam as condições paupérrimas do interior e se tornavam mão-de-obra barata que as industrias tanto precisavam. Mas ainda assim viviam uma espécie de sonho encantado. As grandes empresas com suas técnicas motivacionais, colocavam uma cenoura, amarrada numa vara a frente de cada cabecinha pura daquelas pobres coelhinhas e haja estrada para elas correrem. Trabalhavam initerruptamente muitas horas alem do permitido pela lei natural que regia até então a vida dos amazonenses. Eram milhares de mulheres, todas muito novas, inexperientes e curiosas, vindas do interior, com muitos sonhos para realizar. Um ambiente propício para homens viris como eu e Jô. Com um contingente tão grande como aquele, podíamos escolher sempre as mais bonitas e sonhadoras. Era primordial que fossem sonhadoras e que desejassem voar. Jô ficou responsável por manter um bom plantel sempre a disposição.
Eu estava solteiro, tinha um bom salário. Dividia com dois amigos de infância uma casa bem montada, com vários quartos, piscina e churrasqueira. Ela foi transformada num verdadeiro buncker, toda grafitada, camas, muitas camas, além de tudo compramos um aparelho de som ensurdecedor. Era um poder formidável. Eu fui contratado pela mesma empresa como engenheiro eletrônico e comecei a trabalhar no laboratório de desenvolvimento. Ele, quando me viu, me recebeu como um grande amigo e mostrava não guardar rancor. Nessa época, eu tinha um fusca marrom equipado com os acessórios mais extravagantes. Uma maravilha. Um carro, ainda que fosse um fusca, uma casa, uma piscina, uma churrasqueira. Todo dia era dia de festa. Foi nessa época que nossa amizade se transformou em algo muito especial. Ele se tornou um verdadeiro irmão, sempre por perto.
Concluindo, com aquele passado, onde para comer as pobres e indefesas secretárias do lar, Jô era capaz de se matricular num grupo escolar ou agüentar a loucura do trabalho das multinacionais, só poderia haver um único motivo para ter se tornado professor da rede publica: comer as infelizes alunas. Na realidade tratava-se da mesma coisa: mulheres, sempre mulheres, fossem empregadas domesticas, interioranas sonhadoras ou garotas da classe média baixa do ensino da rede pública. De fato, era muito comum encontra-lo na noite com uma ou duas alunas fardadas.
Contudo não podemos desconfiar de suas motivações magnânimas. Afinal basta olhar o que cada um de nós já fez por um bom periquito. E o que já sofremos por eles. Jô sempre diz, aconselhando os mais novos: buceta é o único predador do homem. Verdade ou não, devemos tomar cuidado, entender esse predador, conhece-lo, cultivar sempre uma boa e leal amizade.
Voltando ao bar e ao Jô, eu estava muito agitado com tudo aquilo, afinal era Novembro. Precisava me acalmar. Quando os amigos partem sem aviso, deixam na gente uma impressão confusa, uma sensação que sempre estão para chegar. Às vezes, me sento no Bar do Armando e ainda fico esperando por ele. Assim, ir à cerimônia, seria aceitar sua morte, expliquei a Jô que rapidamente concordou comigo. A conversa como de costume se alongou, como também a fila de garrafas vazias ao lado da mesa. Nossa sede era descomunal. Mas a lembrança da homenagem no Campus criava um certo mal estar e além de tudo era uma segunda-feira. Então veio a idéia: uma homenagem ao Paulinho, somente eu e Jô, sem aquela aura dos intelectuais, dos académicos que não conhecem o encanto sórdido das ruas. Seria de um modo fraterno, com a camaradagem que sempre nos acompanhou quando bebíamos juntos. Uma forma que o Paulo com certeza aprovaria. A idéia nos deixou excitados e rimos dos que foram ao Campus e estavam, provavelmente, ouvindo velhos discursos — Paulinho devia estar odiando tudo aquilo.
A homenagem logo conferiu dignidade e honradez aos nossos atos. Agora não era preciso nos esconder. Ao contrario, decidimos iniciar a homenagem o quanto antes e na forma mais ruidosa possível. Decidimos ir ao bar do Armando. Quando nos levantamos em direção ao carro, os olhos de Jô estampavam um prazer diabólico, o mesmo que os lobos sentem quando mordem uma jovem presa. Eu nunca vi um lobo morder uma jovem presa, confesso também que nunca vi um lobo, mas tenho certeza que é assim, um prazer incontrolável.
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