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Engenheiro eletrônico e administrador de empresa, sempre trabalhei na área industrial, vivi 12 anos em São Paulo, algumas viagens internacionais e voltei para Manaus, pai de três filhas e um filho, Selma, essa linda mulher da foto, é minha esposa, gosto de preparar uma boa comida para os amigos e ouvir um bom violão.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Capítulo 2 - O Bar do Armando

O Bar do Armando
A força do hábito nos levou até o Bar do Armando. Era uma segunda-feira e foi triste constatar — somente os mais dependentes vão lá às segundas. Não quero com isso criticar ninguém, criar uma pecha ou estigma. Mas às segundas, somente um motivo muito especial, como aquela homenagem, pode atrair homens sérios a um bar do centro da cidade, bem ao lado de uma igreja.
Vamos deixar as abstrações e nos ater ao bar. Estava mais apático que outras vezes, poucas mesas foram armadas naquela noite. O português estava cantando o samba enredo da escola de samba do Morro da Liberdade, feito em sua homenagem para o Carnaval de 2000. Ele, com frequência, parava de cantar, ainda não tinha decorado a letra e hesitava ou misturava os versos. A esposa explodia em risos, entretanto, procurava acalmar os amigos dizendo que ele tinha a seu favor, quase três meses para decorar a letra, e que eram versos simples. Depois fitava todos com seriedade e pedia que dessem crédito à inteligência do marido:
— Armando já decorou coisas mais difíceis: o Hino do Vasco da Gama é uma.
Na verdade todos nós estávamos torcendo, mas ninguém, em bom juízo, seria capaz de apostar que ele conseguiria.
Armando não ligava. Estava feliz. Naquela segunda-feira havia sido indicado, pela Câmara Municipal de Manaus, para receber uma medalha, oferecida às pessoas que prestam serviços relevantes à cidade. Uma invenção de algum vereador para preencher o tempo que deveria ser usado para fiscalizar à Administração do Executivo. Ainda assim, muito melhor que doar sepulturas, fazer programas em rádio ou televisão ou ficar trocando os nomes das ruas de Manaus. Na verdade entorpecer a alma dos gentios com cervejas, pode ser, de fato, uma ação verdadeiramente humanitária que precisa ser homenageada. E viva o Armando.
Não custamos a perceber que o recinto não poderia ser palco para uma homenagem como aquela. O Bar do Armando não é o mesmo às segundas. Mesmo às terças a freqüência é pequena e os meus amigos raramente aparecem lá, somente às quartas é que as coisas começam a melhorar.
Davi é a única exceção! Ele inicia seu final de semana às terças, sempre no Bar do Armando e termina às segundas num bar acanhado do Beco do Macedo. Davi já foi como os demais, tinha uma semana de muito trabalho, mas o seu fim de semana foi se agigantando e das sextas passaram iniciar às quintas, depois às quartas e finalmente às terças. Diante da decisão metafísica, se deveria iniciar, ainda mais cedo o fim de semana, Davi resolveu adiar o término, e passou a freqüentar, às segundas, um pequeno bar do Beco do Macedo, desses que se bebe no balcão.
Agora Davi principia o fim de semana sempre às terças no bar do Armando e vai logo dizendo:
— Só vou tomar uma, vou deixar para beber na sexta...
É sempre a mesma ladainha, dita em voz alta, e é quase um pedido de socorro. Algumas horas depois lá esta ele, como diz a Jozenilda: com um olhar de peixe morto à bomba falando num idioma esquisito.
E a pobre Jozenilda, sempre sorrindo ao seu lado. Jozenilda a abnegada esposa, dessas que só nasce uma a cada cem anos, uma e... foi ser a esposa do Davi. Como é cruel a Lei de Murphy “se algo pode dar errado, vai dar errado”. Como é dura a vida da Jozenilda, sempre cuidando do Davi, escorando seu corpo com um abraço, segurando os copos que ele derruba das mesas, explicando a conversa e até pedindo para ele rir das piadas que nunca entende. Na hora certa do riso, ela o avisa com uma voz suave como o farfalhar das árvores:
Daviiiiiiii
Ele, sem compreender, mas entendendo o aviso, olha para os outros e então... explode em gargalhadas, e em todos fica uma enorme desconfiança que somente ele entendeu a piada.
A felicidade do casal esta no fato da Jozenilda nunca ter reclamado do marido, ela nunca deu o braço a torcer. Há vinte anos, quando o apresentou a sua mãe, aconteceu um entrevero ou melhor dizendo um verdadeiro arranca rabo entre os dois. Era um domingo e a família estava reunida na frente da TV. Ela entrou rindo na sala abraçada com o Davi: um sonho feliz na inocência da juventude. Quando todos se voltaram para eles, ela disse:
— Mamãe, este é o Davi Carlos; estuda no colégio e esta fazendo teatro: quer ser ator.
A mãe a chamou de lado e olhando-o de soslaio, com uma grande desconfiança e sem estender à mão, fulminou o idílio da filha:
— Ele é muito feio. Mas me diga, precisava também ser ator?!
Certo dia questionei a mãe da Jozenilda, mas ela disse que tudo foi um mal entendido e desconversou:
— Ele era só um estudante assustado querendo namorar minha filha.
Davi tem outra explicação:
— Além da forte carga emocional a conotação foi outra.
São experiências assim que marcam a gente para todo o sempre. Foi, apesar de tudo, uma experiência fecunda para eles. Tornaram-se um casal exemplar. Admiro o respeito entre os dois e o cuidado que ela dispensa ao marido nas horas mais incomodas. Como acontece todos as noites na hora de deixar o bar e voltar para casa:
Davi Carlos... tá na hora... vamos para casa... menino já chega.
Ela nunca precisa repetir mais do que 10 ou 20 vezes. Ele finalmente abre os olhos, se levanta e vai, sem questionar, para casa.
Só uma vez na minha vida vi a Jozenilda ficar zangada com o Davi. Aconteceu num ensaio de uma escola de samba. Foi por causa de uma passista, uma morena bonita mas com pesadas marcas do tempo. Estava com uma fantasia sumária e um enorme topete na cabeça. Ela olhou para o Davi, sorriu e o chamou para dançar. Davi que não gosta de contrariar ninguém, aceitou o convite. Dançaram uma meia hora. Tempo suficiente para germinar na cabeça da esposa aquilo que uma mulher tem de pior: o ciúme. E o ciúme transformou o beijo inocente e trivial que Davi deu na passista num ato reprovável. Naquela noite, Jozenilda se mostrou uma mulher insensata e ciumenta. Foi somente com muito custo, que a fizemos entender que a morena só estava interessada no borogodo do Davi, e ele por sua vez, só quis ser simpático. No final, como é de praxe, Jozenilda chorou, pediu desculpas ao marido, que generoso como é, foi complacente. Depois ela se desfez em carinhos, se tornou mais dependente, e como manda o figurino, ficou ainda mais submissa. No outro dia acordou cedo, lavou, passou, arrumou a casa, preparou café e ovos fritos para o marido que ainda dormia. Antes de sair para o trabalho, ainda com muito remorso, escreveu um bilhete dizendo que voltaria cedo para fazer o almoço: que ele não se preocupasse. Uma mulher feliz torna mais fácil a vida difícil dos homens.
Deixando a vida dos outros e a sorte de cada um no casamento de lado, vamos voltar ao bar do Armando naquela fatídica noite. Lá notei com certa surpresa que para todo dia é dia. Desde nossa chegada, mesmo sendo uma segunda feira, ele era constantemente saudado por todos. Pagava uma pinga aqui, uma cerveja ali, distribuía sorrisos e abraços. Só decidimos sair de lá quando veio sentar-se conosco o Ricardo, um amigo comum, que acabara de chegar trazendo a notícia da morte do Leal, amigo de todos e freqüentador contumaz do local. Morreu de cirrose hepática: barriga inchada, vários dias de coma... vomitando sangue. A notícia se espalhou rapidamente, paralisando o bar. Depois de alguns minutos todos voltaram a beber compulsivamente. Ficaram com os nervos à flor da pele. também ficou nervoso com a notícia, mas depois de várias doses se acalmou. Era um homem feliz e sempre se sentia bem em qualquer bar, em qualquer hora, em qualquer situação. Não era o primeiro amigo que perdia assim. Mas, por motivos óbvios, depois daquela notícia, resolvemos sair dali. Decidimos ir ao Bar do 5 Estrelas.
Durante o trajeto ele afagou várias vezes a barriga, ali na região do fígado. Estava distante, alheio. Talvez tentando adivinhar o resultado do teste de sangue que fez dias antes, quando sentiu fortes dores no abdome. Fez tudo o que o médico solicitou. Mas se recusava a ir pegar os resultados. Quando entramos no bar do 5 Estrelas, ele esqueceu da vida.

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